Um caso de dupla personalidade
O ano passado, em um dos eventos sociais que participei em um restaurante italiano, conhecí um personagem , digamos, bastante...original.
Larry é um homem de aparência bem comum ( nos seus quarenta e poucos anos , magro, cabelos e olhos castanhos, meio narigudo...), e foi do lado dele na mesa que eu acabei me sentando.
Logo que cheguei no local, recebi um elogio seu ( ‘Que lindo vestido e sapatos!’) – o qual agradeci sem grande surpresa, já que muitos homens americanos ( e mulheres tambem) costumam elogiar a roupa , cabelo etc... dos outros de maneira muito natural e expontânea .
Afinal , elogios são comuns nesta sociedade, e na maioria das vezes não têm NADA a ver com azaração. São simplesmente parte da cultura.
Anyway, após tomarmos um vinhozinho e comermos a sobremesa, meu vizinho de mesa de repente vai e puxa um álbum de fotografias de debaixo da mesa e me pergunta :
-Quer dar uma olhada no meu álbum de fotos?
-Ok ,- respondi tentando parecer mais interessada do que realmente estava.
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O álbum:
O álbum de fotos do Larry mostrava várias fotos de grupos de mulheres , como se fizessem parte de uma associação ou clube. Fotos com mais de dez, quinze delas, em pé, abraçadas e sorridentes, posando para a camera.
"Ok, pensei. Um outro clube social ao qual ele pentence... E daí?"
.
Então apareceram algumas fotos dele com o que me pareceu ser sua irmã gêmea. Os dois juntos na mesma foto, muitas vezes usando um conjunto de roupas parecidas . Havia uma especialmente interessante, com os dois muito bem ‘produzidos’ ( ele de terno preto e branco e ela com um vestido no mesmo estilo e cores)
-Legal...É sua irmã gêmea? - perguntei.
Ele apenas sorriu e trocou um olhar com a organizadora de nosso evento. Então respondeu:
-Na verdade, ele ou ela , são a mesma pessoa...
Então comecei a observar melhor as fotos e percebi que , de fato, era ele mesmo - ora vestido de Larry, ora de mulher. E as fotos dos dois juntos... Photoshop é claro.
-Este ...- me informou ele , enquanto apontava para sua foto ‘masculina’, é o Larry. E esta aqui ( apontando para aquela que eu havia imaginado ser sua irmã gêmea...) é a Kate.
Pequena pausa.
-Oh... Que interessante. Realmente você me enganou!
Foi aí que , olhando novamente para as fotos das ‘amigas’ , percebi que de fato eram todos homens ( drags ou travestis) vestidos de mulher!
-Legal, Larry. Parece um grupo bem divertido. ( O que mais eu poderia dizer ??)
Gostei em especial desta aqui , do Larry e da Kate, vestidos de preto e branco. Very classy...
“Agora eu entendo porque ele pareceu TÃO entusiasmado com meu vestido e sapatos. – pensei. - Ele deve ter se visto NELES! ‘lol
O resto do nosso almoço prosseguiu normalmente e , a certa altura , nossa organizadora chegou a mencionar que eu havia escrito um romance. Então duas pessoas se mostraram interessadas em comprar um exemplar in loco ( ou invés de pela Amazon) e eu segui até o carro para pegar os livros em meu porta-malas.
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Desde então, já estive com Larry algumas vezes em mais de um evento social - inclusive a festa de Réveillon, o ano passado, que participamos na casa de nossa hostess e organizadora.
Aliás, na ocasião da festa , ele apareceu muito elegante ( de blazer e calça dockers) e nós dois dançamos HORRORES juntos , lol , já que a música era no estilo ‘discoteca’ ( que meu marido não suporta e muito menos sabe dançar) .
Naquela ocasião, Larry tambem me informou que costuma ir ‘roller skating’ às terças à noite .
-Vocês deveriam aparecer lá uma noite dessas...’
Fazia mais de vinte anos que eu não patinava mas ainda assim fiquei animada e lhe disse que iríamos sim. Ficamos de combinar.
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Vocês devem estar imaginando se eu contei para o meu marido sobre ‘o outro lado do Larry...'.
De fato eu contei sim – tanto para ele , quanto para minha mãe que , em dezembro, tinha vindo para os E.U. para passar o Natal e Réveillon conosco.
De início os dois pareceram meio surpresos ( principalmente porque o tinham conhecido na festa do Réveillon, muito sobriamente vestido de 'Larry' ...) mas minha mãe apenas comentou ‘ Que coisa!’ e meu marido preferiu não dizer nada.
Desde o começo do ano , já estivemos com Larry umas três ou quatro vezes.
Afinal , resolvemos nos aventurar no roller skating e realmente , o lugar é muito divertido às terças à noite ( quando está aberto apenas para adultos e a música é principalmente dos anos 80 e 90 !! )
Confesso que fiquei um pouco intimidada em subir num par de patins depois de tantos anos ( e olha que eu era FERA quando patinava no Rio nos anos 80!! lol) .
Já para o meu hubby ,( que esquia e pratica o snowboarding) a experiência foi bem menos challenging...
Mas afinal, andar de patins é como andar de bicicleta: mesmo depois de meio século sem praticar, você reaprende!
E sim, eu tomei VÁRIOS tombos, mas nada que me quebrasse os ossos...
Anyway, em nosso primeiro encontro no rinque, teve uma hora que perguntei ao Larry se ‘a Kate’ tambem costumava patinar.
- Sim , - disse ele. - Às vezes ela vem...
Então, de repente , ele me perguntou:
-Qual do dois você prefere? O Larry ou a Kate?
Eu tive de pensar um pouco antes de responder.
- Não sei. Na verdade só conheço a Kate por fotografia.... E você? Qual dos dois VOCÊ prefere?
Então ele me confessou que o Larry ‘não gostava muito de sua aparência...’ e que algumas pessoas gostavam mais da Kate por ela ser menos agressiva.
-Pode ser. - eu respondi. – Mas , pessoalmente , não acho o Larry nada agressivo. E tampouco vejo nada de errado com sua aparência!
Contudo, depois daquele nosso primeiro encontro e conversa no rinque, fiquei pensando:
O Larry , sendo homem e com sua aparência tão comum, provavelmente jamais recebeu algum elogio físico. Já a Kate..., com seus vestidos, saltos altos, brincos compridos , maquiagem, PEITOS enormes...com certeza que sim !! lol Mesmo que tenha vindo apenas de outras mulheres...
-Em todo caso, - completei - se quiser , da próxima vez que vier ao rinque traga a Kate ao invés do Larry...
Ele logo se entusiasmou com a idéia e prometeu que faria isso.
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Meu marido, apesar de toda sua ‘compreensão e tolerância para com as excentricidades alheias...', não ficou muito satisfeito com a minha sugestão.
Afinal , mesmo sabendo ‘do outro lado de Larry’ , ele nunca tinha conhecido a Kate na vida real!
( E a coisa interessante é que quando o Larry está ‘de Larry’ , ninguem jamais suspeitaria que ele tambem pode ser a Kate, pois ele se veste de maneira discreta, não fala alto, não tem o menor trejeito...Nada que possa denunciar o seu ‘outro lado’. Além do mais, trabalha como carpinteiro! lol
-Você não deveria tê-lo incentivado a vir aqui na próxima vez vestido de Kate...
-Ora e por que não? Qual é o problema ?
- E se alguem se enfezar com ele e uns machões resolverem lhe dar uma surra? Quem é que vai defendê-lo? Você??
-Que absurdo! Isto aqui é Austin -não Dallas ou Chicago. Que idéia!
-Mesmo assim, acho que você não deveria tê-lo incentivado a se vestir de travesti.
-Ele me disse que gosta mais da Kate do que do Larry e eu lhe disse que ele poderia ‘trazê-la’ aqui da próxima vez . Além do mais , estou curiosa para conhecer esse seu outro lado...
Diante disso ele se calou, mas nem por isso ficou mais satisfeito.
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Na próxima vez que fomos ao rinque ( e sim, meu marido veio junto! lol) , foi com a Kate que nos encontramos.
De saia e blusa justa cor-de- rosa , brincos de argola , uma longa peruca, maquiagem e seus ENORMES peitos postiços. De fato, ela parecia mais ‘feminina’ do que muita mulher patinadora alí !! lol
- Adorei seu colar de contas rosa com esse coração de cristal... – eu lhe disse, quando fizemos uma pausa após darmos várias voltas em torno do rinque.
-Thank you. - respondeu ela .
Kate é uma ‘moça’ muito discreta , feminina e bem comportada. E divertida, pois gosta de se arrumar e patinar!
Meu marido, I'm proud to say, se portou e conversou com ela da mesma forma descontraída e natural com que falou com Larry das outras vezes que nos encontramos.
Naquela noite, patinamos até o lugar fechar à meia-noite.
Na saída, caminhamos com Kate até o seu carro e depois seguimos em direção ao nosso.
-Viu só? - eu lhe disse, enquanto entrávamosno carro. - Não houve absolutamente nada. Inclusive você viu que a Kate não era a única personagem de ‘plumas e paêtes’ por lá. Tinha até uma figura, não sei se homem ou mulher, patinando de 'noiva' , com véu e tudo!!
-Realmente... - foi só o que ele respondeu.
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Já faz algumas semanas que, todas às quintas, meu marido e eu frequentamos uma aula de ballroom dancing para iniciantes . Cada dia o professor ensina um tipo de dança diferente e ontem foi o dia da rumba!
Em nossa turma, há sempre mais mulheres do que homens pois nem todo o mundo vem acompanhado.
Pois então. Ontem a aula já tinha começado, e qual não foi a minha surpresa , ao ver uma 'certa' aluna atrasada entrar na sala.
Alta, de vestido, saltos altos, cabelos longos , tiara, brincos e maquiagem. Era a Kate!
(Fazia já muitos meses que não íamos ao rinque de patinação , pois com meus novos cursos no ACC, tenho tido que estudar em casa toda noite durante a semana.)
Assim que ela chegou e se juntou ao grupo , entre um passo e uma virada, eu lhe gritei um rápido ‘Hello!’.
E pensei um pouco apreensiva : "O-ho...O que esses homens aqui vão fazer quando chegar na hora de dançar com ela? Será que algum deles vai se recusar e deixar a sala? Bem, pelo menos o MEU hubby eu sei que não fará tal desfeita!"
Mas a minha apreensão provou ser totalmente infundada pois TODOS os homens alí se portaram de maneira impecável. Os jovens, os velhos, os que dançam bem, os que dançam mal, os bonitos e os feios...lol
Na hora da rotação de partners , todos dançaram com a Kate do mesmo modo que dançaram com as outras moças e senhoras.
E no final das contas, eu pensei, por que não?
Tenho certeza que todos devem ter percebido se tratar de um homem travestido de mulher. ( Segundo o meu marido, mesmo que tivessem sido enganados pelos 'outros atributos' de Kate, suas mãos ( de homem) a denunciariam...) No entanto, todos se portaram como perfeitos gentlemen.
Assim são os homens americanos. Mesmo no Texas. Ou pelo menos em Austin! ( a 'São Francisco' , do rígido e conservador Sul ...)
Quanto à mim...
Não pude deixar de pensar se a mesma cena 'camarada' teria ocorrido em uma sociedade latina.
Mesmo durante uma descontraída aula de dança de salão...