A paixão por Carmem e o epicurismo
Este mês foi inaugurado o novo teatro de performing arts na cidade onde moramos.
Não estamos em Nova Iorque ou São Francisco , mas ainda assim, nossa cidade ( que possui mais de um milhão de habitantes...) tem uma vida cultural bastante razoável.
Existem bons restaurantes, a cidade tem o seu próprio balé e teatro de ópera... - sem falar que , volta e meia , recebemos uma 'troupe' encenando algum musical de sucesso da Broadway !
Quanto ao novo teatro, para nós a mudança de endereço não poderia ter sido melhor , já que o local agora fica a apenas uns 5 minutos lá de casa, bem no centro.
Resolveram estrear com a ópera de Bizet, "Carmem" e, é claro que nós não poderíamos deixar de ir.
Na verdade sempre gostei e entendi muito mais de balé do que de ópera. Afinal, dos seis aos quinze anos estudei ( seriamente !) com uma professora russa em uma academia de dança no Rio .(Sua família havia fugido da União Soviética logo após a Revolução de 1917...) Houve mesmo uma época que achei que seguiria a carreira de bailarina ..:-).
É claro que isto foi a SÉCULOS atrás, mas o fato é que meu interesse e amor pela arte da dança persistiu até os dias de hoje.
A verdade é que concluí que era MUITO melhor ser espectadora do que estrela ( ou aspirante à isso..).
Toda aquela dedicação e sacrifício! ( Deus me livre...:-)) Os treinamentos diários. As dietas rigorosas. Sem falar na competição ferrenha entre as dançarinas! Eca. Não, muito obrigada.
Pensei: Tem coisa melhor do que ser simplesmente espectadora? Poder me arrumar e me emperiquitar como quiser , chegar ao teatro poucos minutos antes do espetáculo, tomar uma taça de vinho ( sem culpa!) antes de sentar-me na platéia, ler o programa com o resumo da estória, tomar OUTRA taça de vinho ( novamente sem culpa...) durante o intervalo e simplesmente apreciar o espetáculo sem compromisso com nada ou ninguem ? Depois comentar com meu acompanhante sobre a 'ponta', a 'abertura' ou a 'precisão' da bailarina e por fim , satisfeita ( ou meio decepcionada, dependendo do caso...) calmamente deixar o teatro e voltar para casa! (Quando isto acontece no Rio, melhor ainda , pois podemos sair para jantar DEPOIS do show , já que lá ( ao contrário da maioria das cidades européias e americanas...) os restaurantes ficam abertos até as ' altas horas da madrugada! ' :-))
Ah, que maravilha, poder comer um belo filé au poivre , um risotto de camarão ou um fettucini ao molho de roquefort, sem a MENOR preocupação com o próprio peso!!
Realmente não há nada melhor do que o desfrute de um prazer sem culpa...
Mas voltando à Carmem...
Eu sempre adorei a música de Bizet. Há vinte anos atrás assisti à uma inesquecível performance de Carmen ( a ópera , não o balé...) no Teatro Municipal do Rio. Nunca me esqueci do nome da cantora lírica americana no papel da sensual cigana de Sevilha: Isola Jones.
Quanta paixão, insolência e sensualidade! Que presença de palco! Me senti tão enfeitiçada pela bohéminienne quanto o próprio D. José...:-)
Foi mais ou menos naquela época que tivemos de ler o livro 'Carmen' , de Mérimée - justamente a estória que inspirou Bizet em sua ópera. Estava cursando o programa superior de francês da Aliança Francesa no Rio : o Nancy.
Ah, me lembro tão bem das análises e comentários que fazíamos em classe sobre a obra! Ninguem , contudo, além de mim, parecia ter a menor compaixão por D. José.
" Um chato! - diziam minhas colegas. " Um machão, obcecado com a coitada! E ainda por cima , acabar por esfaqueá-la no final!!"
Mas eu tinha pena dele. Sofria com a sua angústia e aquela paixão enlouquecida pela jovem cigana insensível. Pobre D. José...
Hoje, vinte anos depois , fui novamente ver o mesmo espetáculo, desta vez aqui, nos E.U.
O teatro está muito bonito. O cenário foi igualmente de primeira. A música de Bizet maravilhosa , como sempre.
Antes do show tivemos uma pequena palestra e eu fiquei sabendo pela primeira vez, que Bizet JAMAIS botou o pé na Espanha em toda sua vida!!
Como é possível que um francês , que nunca esteve na Espanha, possa ter escrito aquela música ?? Pode existir na Terra algo mais 'espanhol' , mais 'sevilhano' e ' ibérico' ...Que traduza melhor a alma do sul da Espanha do que a música de Carmem ?!! ( ainda que a letra da ópera seja em francês...)
Ah, mas ao contrário da performance que tinha visto no Rio com Isola Jones, a Carmem que vi no teatro aqui não me causou a menor emoção.
Apesar de possuir um belo rosto e a cabeleira farta ( o que sempre ajuda ao interpretar Camem...) , assim como uma voz afinada e trabalhada, a mulher me deixou completamente gelada!
Não havia um pingo da mais remota sensualidade nela. Os movimentos dos braços eram feios e sem feminilidade , o andar mondrongo. Mais parecia um desses pivetes de rua , chupando chiclete e dançando break.... Só faltava a touquinha de meia na cabeça!
Então pensei que a verdadeira Carmem de Bizet deveria ser interpretada , de preferência , por uma mulher latina. Uma francesa, uma espanhola ou portuguesa....Quem sabe até uma brasileira ( se bem que não devem haver muitas brasileiras por aí como cantoras líricas...Triste. ) .
Não. A sensualidade não é a marca registrada dos anglo-saxões e, apesar de que Marilyn Monroe era americana, penso que ela jamais poderia ter interpretado Carmem.
Isola Jones foi uma exceção. Talvez porque fosse uma cantora mulata e cujo sangue africano lhe tivesse dado um 'tempero' extra... Ou talvez simplesmente eu fosse jovem demais e tenha visto a coisa com outros olhos...Quem sabe?
De qualquer forma, quanto ao espetáculo aqui na semana passado, sempre valeu a pena. Afinal pudemos conhecer a nova 'Opera House ' da cidade , tirar um vestido ou blazer do armário que nem sempre temos a ocasião de usar, aprender algo novo sobre Bizet e novamente , ouvir sua música divina.
De quebra, eu pude mais uma vez , entre um ato e outro , tomar minha taça de vinho TOTALMENTE sem culpa , e me dizer : Que bom que eu desisti de ser bailarina!!